
quarta-feira, 17 de julho de 2013
terça-feira, 16 de julho de 2013

O primeiro achado de Lund foram poucos ossos de
uma das menores preguiças-gigantes da América
Lund
também é reconhecido como pai da arqueologia e da espeleologia (estudo
das cavernas), pioneirismo extensivo às três Américas. Foi o primeiro
a assinalar a presença de sambaquis e inscrições rupestres, além
de descrever instrumentos líticos encontrados. Ele foi ainda o primeiro
a localizar e entrar em algumas das mais de 800 cavernas que explorou.
Cartelle
enumera algumas das
espécies extintas que tiveram fósseis descobertos pela primeira
vez por Lund: cavalos, diversos carnívoros como o tigre-dentes-de-sabre
e o cachorro das cavernas, além de preguiças terrícolas, capivara
e tatu gigantes. Ainda hoje, Lund é a principal referência para
estudiosos da paleontologia de mamíferos no Brasil. Pretendia desenvolver
monografias sobre diferentes mamíferos pré-históricos, mas realizou
seu intento apenas para os caninos.
As
coleções remetidas a sua pátria devido ao financiamento pela monarquia
dinamarquesa seriam estudadas no final do século 19 e início do
20 por um paleontólogo de Copenhague, Herluf Winge, que interpreta
em diversos volumes a obra de Lund. No Brasil, os escritos de Lund
foram publicados em 1935, pela Biblioteca Mineira de Cultura, e
em 1950 pelo paleontólogo Carlos de Paula Couto, continuador de
seu trabalho.
Antes
do surgimento da teoria de Darwin, as descobertas de Lund apontavam
para a evolução das espécies. Luterano convicto, o dinamarquês acreditava
que desastres naturais teriam levado à extinção de diversas formas
de vida. Especula-se que a descoberta de fósseis que inviabilizavam
a teoria das catástrofes de que Lund era partidário teria contribuído
para seu afastamento da ciência, ainda por volta dos 40 anos.
Raquel
Aguiar
Ciência Hoje/RJ
agosto/2001
Ciência Hoje/RJ
agosto/2001
Um
botânico em Lagoa Santa
Lund lança base da ecologia no Brasil com estudo paleontológico
de grutas mineiras

Acima, gruta de Maquiné. Lund construía um casebre de pau-a-pique na
frente das grutas visitadas, ao qual se atava com uma corda pela cintura
Peter
Lund nasceu em Copenhague a 14 de junho de 1801, filho de ricos
comerciantes de lã. Bacharel em Letras, aos 17 anos ingressa no
curso de Medicina. Em 1824 começa o trabalho como pesquisador de
campo com dois trabalhos condecorados. No ano seguinte, publica
um livro de fisiologia que foi adotado nas universidades de Copenhague,
Viena e Nápoles. No mesmo ano, seu talento para a zoologia é revelado
na premiada monografia O sistema de circulação nos crustáceos.
Lund
transfere-se para o Brasil em dezembro de 1825 e logo sente a "atração
mágica da natureza tropical". Reside inicialmente na aldeia
de pescadores de Itaipu (RJ). Dedica-se à zoologia e sobretudo à
botânica. Estuda o comportamento das formigas e os ovos de certos
moluscos em um dos mais completos ensaios sobre o assunto. Monta
diversas coleções zoológicas, remetidas ao Museu de História Natural
da Copenhague.
O
naturalista embarca para Hamburgo em 1829. Exibe suas pesquisas
na França e Itália, onde mantém contato com autoridades científicas
da época. Em 1933, retorna em definitivo ao Brasil. Desta vez, dedica-se
à botânica das plantas domésticas em companhia de L. Ridel. Juntos,
excursionam pelo Rio de Janeiro, São Paulo, Goiás e Minas Gerais
para estudar a fauna e flora locais.
Em
outubro 1834, um ano após a partida, Lund e Ridel chegam a Curvelo
(MG), onde encontram casualmente Peter Claussen, que explorava salitre
em cavernas calcárias na região de Lagoa Santa. Havia em seu interior
grandes ossos que os habitantes locais atribuíam a homens pré-históricos
gigantescos. A extensa área para pesquisa levaria Lund a se dedicar
à paleontologia. A excursão prossegue até Ouro Preto, onde Ridel
adoece. Lund compila suas notas de viagem nas Observações a respeito
da vegetação dos campos do interior do Brasil.

No início do século 19, Lagoa Santa tinha cerca de 80 casas e 500 habitantes
Em
1835, Lund retorna a Lagoa Santa. As primeiras grutas visitadas
foram a Lapa Vermelha e a Lapa Nova de Maquiné. Sobre a última,
escreve: "quanto a mim, confesso que nunca meus olhos viram
nada de mais belo e magnífico nos domínios da natureza e da arte".
Lund preservou certa paternidade sobre a descoberta, pedindo inclusive
a conservação da gruta em testamento. As escavações nas grutas foram
registradas por Andreas Brandt, desenhista e pintor norueguês que
se torna auxiliar de Lund.
Lund
é considerado o pai da espeleologia brasileira pelo pioneirismo
na visita a várias grutas e pela consciência ecológica vanguardista
que demonstrou. "Infelizmente, retiraram o conteúdo destas
grutas para extração do salitre, sem o mínimo respeito pelas relíquias
acumuladas nestes lugares realmente sagrados." Lund cria também
a base para uma ecologia brasileira ao convidar o botânico Eugene
Warming para realizar um levantamento do cerrado da região de Lagoa
Santa, que originou o primeiro trabalho de fitoecologia do mundo,
publicado em 1840.
Raquel
Aguiar
Ciência Hoje/RJ
agosto/2001
Ciência Hoje/RJ
agosto/2001
Intercâmbio
científico Brasil-Dinamarca
Lund fomenta diálogo institucional estimulado por suposta vinda
de vikings ao país

Em carta à Real Sociedade, Lund , relatou a descoberta da primeira observação
de pintura rupestre na América, retratada pelo desenhista Andreas Brandt
A
aproximação entre as instituições científicas brasileira e dinamarquesa
do início do século 19 é fruto da busca por provas da suposta chegada
de vikings ao Brasil antes de 1500. Lund é parcialmente responsável
por esse estreitamento de laços: ele era membro do Instituto Histórico
e Geográfico Brasileiro (IHGB), fundado no Rio de Janeiro em 1838,
e da Sociedade Real dos Antiquários do Norte, criada em 1825 por
Carl Christian Rafn.
Peter
Lund e Peter Claussen foram admitidos no IHGB em 1839. Claussen
foi freqüentador assíduo da associação; Lund contribuiu com volumosa
correspondência acadêmica e remessa de materiais. Ele doou ao Instituto
um exemplar de um livro de Rafn que narra a descoberta da América
do Norte pelos dinamarqueses no século 10 e causou grande impacto
sobre a intelectualidade brasileira.
Na
troca de informações entre o Instituto e a Sociedade Real, destaca-se
um texto traduzido por Lund. O documento descoberto na Livraria
Pública da Corte, datado de 1754 e bastante danificado, descrevia
uma cidade abandonada no interior da Bahia encontrada por aventureiros
em busca de ouro. O povoado localizado em um planalto e protegido
por uma muralha com inscrições indecifráveis teria a estátua de
um homem apontando o Pólo Norte na praça central. À beira do rio,
ouro e prata abundantes.
A
revista do IHGB chegou a anunciar a descoberta da cidade -- que
não veio a acontecer de fato. Lund traduziu e publicou nas revistas
brasileira e dinamarquesa os relatórios da expedição frustrada.
Em suas observações, acrescentou que era recomendável o estudo dos
homens primitivos do Brasil por meio de seus vestígios mortais,
já que o relato não era confiável.
Em
1844, Peter Lund formularia nas publicações de ambas as sociedades
suas idéias sobre a origem do homem pré-histórico brasileiro. Ele
aceitava a co-existência de animais extintos e homens, pois encontrara
ossos de homens e animais misturados. Nada ficou provado, pois inundações
são comuns nas grutas calcárias de Lagoa Santa. Para Lund, o povoamento
da América do Sul seria muito antigo, já que "(...) várias
espécies animais parecem ter desaparecido da criação viva até o
tempo do aparecimento do homem aqui". Ele conclui que o homem
fóssil americano pertenceria à mesma raça que o homem atual.
A
conclusão era contrária à suposição de que o homem americano teria
origem no Velho Continente. Segundo Lund, haveria um vínculo estreito
entre a raça mongolóide e a dos indígenas americanos. Ele arriscava
a hipótese de que essa raça seria originária das Américas e teria
se espalhado para a Ásia (hoje, provou-se ter ocorrido justamente
o inverso). Com isso, frustrava-se aos olhos de Lund a tentativa
de se realizar uma história comum, que motivava os laços entre o
Instituto Histórico e a Sociedade Real. A correspondência entre
as duas instituições diminuiu e cessou em 1864, ocasião do falecimento
de Carl Christian Rafn.
O
'homem de Lagoa Santa'
Descoberta de ossadas humanas pode ter levado Lund a abandonar
a ciência

Crânio e mandíbula de um 'homem de Lagoa Santa'
Peter
Lund era adepto da teoria catastrofista, segundo a qual desastres
naturais teriam extinguido as sucessivas formas de vida. A teoria
foi proposta pelo anatomista francês Georges Cuvier a partir do
criacionismo e do atualismo geológico. O criacionismo atribuía a
Deus a gênese de cada espécie e se opunha à teoria de Lamarck, para
quem as espécies evoluíam lentamente em função do uso e desuso de
características adquiridas. Já o princípio do atualismo geológico
via nas diferenças entre fósseis de camadas geológicas distintas
a prova de que teria havido sucessivas 'criações'.
Além
de defender o catastrofismo, Lund era fixicista: acreditava
não haver ligação entre as espécies. Negava, portanto, a evolução
proposta por Lamarck e sistematizada posteriormente por Darwin.
Ele já percebia, porém, semelhanças entre espécies fósseis e atuais.
Escreveu, inclusive, um estudo comparativo sobre o assunto.
Os
catastrofistas aceitavam a existência de um homem 'antediluviano'
como um ser distinto do homem atual (para Cuvier, a última grande
extinção seria fruto do dilúvio bíblico). Mas a noção de que esse
homem existiu na América não era considerada à época. Apesar das
idéias circulantes, Lund convenceu-se da antigüidade das ossadas
humanas descobertas por ele em 21 de abril de 1843.
Esses
ossos de cerca de trinta indivíduos estavam misturados a fósseis
de animais, "todos depositados aproximadamente na mesma época",
conforme relata Lund. A idéia de uma humanidade tão antiga a ponto
de ter coexistido com a fauna extinta ainda não era considerada
plausível.

As escavações de Lund apontavam para o evolucionismo e colocaram
em xeque sua fé luterana e a teoria catastrofista de Cuvier
Do
ponto de vista antropomórfico, os fósseis descobertos por Lund eram
bastante distantes dos indígenas americanos e próximos dos negróides.
Suas características físicas eram homogêneas, o que indica seu isolamento
genético (ele não teria se misturado a grupos diferentes). Essa
identidade configurou o perfil daquele que ficou conhecido como
o 'homem de Lagoa Santa'.
Entre
as ossadas de Lagoa Santa, somente as mais antigas -- datadas entre
11 e oito mil anos -- possuem características negróides; os fósseis
a partir de oito mil anos já apresentam características mongolóides.
O desaparecimento da raça negróide que habitou a região e seu relacionamento
ou não com os mongolóides que vieram a seguir e dominaram o continente
permanecem não esclarecidos.
Pouco
depois da descoberta do homem de Lagoa Santa, Lund abandonaria suas
pesquisas. Em carta à família, atribuiu a renúncia a problemas financeiros.
Cástor Cartelle propõe outra justificativa. "Lund ficou um
tanto desorientado com a existência do homem pré-diluviano e sincrônico
da fauna recente e extinta. Acredito que o fato de comprovar que
sua perspectiva catastrofista não tinha sustentação foi uma das
causas que o impeliram a abandonar a vida científica." A extrema
religiosidade também é considerada por alguns autores como motivo
do precoce abandono da ciência.
Raquel
Aguiar
Ciência Hoje/RJ
agosto/2001
Ciência Hoje/RJ
agosto/2001
O
enterro festivo de Dr. Lund
Estimado pelo povo de Lagoa Santa, pediu música e proibiu
lágrimas no funeral

Casa de Lund em Lagoa Santa. Nos meses de seca, ele
realizava expedições; na época das chuvas, recolhia-se
para estudo dos fósseis no galpão nos fundos da casa
Peter
Lund era muito estimado pelos habitantes da pequena vila de Lagoa
Santa, que costumavam chamá-lo Dr. Lund. De hábitos excêntricos
e temperamento arredio, preferia o isolamento. Teve constantemente
a seu lado Nereo Cecílio de Ramos, filho adotivo de Lagoa Santa
que o auxiliava em tudo o que fazia. Ao morrer, distribuiu seus
bens entre o filho e algumas pessoas que o serviram.
No
livro O Naturalista, de 1923, Nereu revela um pouco da personalidade
do paleontólogo. "Ele conservou até os últimos dias grande
interesse pelo progresso da ciência, e sentia um grande prazer,
quando na sua solidão era informado a esse respeito. Era de um caráter
nobre, benévolo, amável e caritativo (...) era por todos que o conheciam
de perto muito considerado e respeitado pelo seu caráter, honradez
e modo independente de pensar, e é indubitável que a sua palavra
e opinião tiveram grande peso no ânimo dos homens de influência
da localidade..." Nereu cita ainda que Lund medicava na região,
sempre acertando o diagnóstico. "O seu trato fidalgo, a todos
dispensado, sem exceção de grandes ou pequenos, cultos ou ignorantes,
fazia-o querido e respeitado pelo povo lagoa-santense..."
Lund
viveu na mesma casa até a morte. Nos fundos, construiu um barracão
para preparação e estudo de fósseis. Protestante, não poderia ser
enterrado no cemitério local. Comprou um terreno que mandou "murar
para enterrar meus amigos e a mim também". Lund determinou
que queria ser sepultado à sombra de um pequizeiro -- árvore típica
do cerrado, que dá um fruto aromático -- num local aprazível onde
costumava estudar. Também ali foram sepultados seus colaboradores
Pedro Andreas Brandt, Guilherme Behrens e João Rodolfo Müller. Ao
lado do túmulo, marcado por uma lápide de mármore negro, foi erguido
um monumento a Lund e a Eugene Warning por iniciativa da Academia
Mineira de Letras -- hoje tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico
e Artístico Nacional.

O frondoso pequizeiro marca o local onde Lund está enterrado
Lund
faleceu a 25 de maio de 1880, três semanas antes de completar 79
anos. Como Nereo Cecílo escreve em carta à família na Dinamarca,
a última enfermidade durou cerca de dois meses. Ao fim, Lund delirava.
"Dizia que o que ele mais amava eram as ciências e sobretudo
a música," Nereo relata. "Suas últimas palavras foram:
amor, amor, amor."
Dias
antes de morrer, Lund chamou o coveiro. Deu-lhe uma generosa gratificação
e encarregou-o de abrir imediatamente sua cova, que deveria ter
mais de vinte palmos de profundidade. Lund chamou também a autoridade
local e pediu que não o abandonasse até expirar para não haver demora
na leitura de seu testamento, que continha recomendações para execução
imediata. Solicitou uma grande festa para todos os moradores do
arraial; à frente do cortejo, deveria vir a Corporação Musical de
Santa Cecília -- primeira banda de música de Lagoa Santa, fundada
e custeada por Lund. Pediu músicas alegres e que ninguém chorasse.
Em sua casa, a mais farta mesa estaria posta, com os vinhos de sua
adega.
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